
Um fato social só pode ser explicado por outro fato social
RELIGIÃO E SOCIEDADE
13/11/2013 01:54Religião e Sociedade
Francisco Lima Soares
Para os ditames da antropologia, os povos de todos os tempos, de todas as civilizações e de todas as culturas tiveram religião. O sentimento de sacralidade, presente de forma manifesta no homem primitivo, permanece ainda hoje, de modo que a nossa espécie, segundo o pensador romeno Mircea Eliade em sua obra o sagrado e profano, tipifica o homem entre outros qualificativos, de homo religiosus. Segundo ele há um sagrado intrínseco na natureza humana, que se manifesta mesmo naqueles que renunciam à visão sacralizada do mundo.[1] Os pensadores pré-socráticos, se interrogando sobre a natureza dos deuses e o valor dos mitos, fundaram a crítica racionalista da religião. Assim, por exemplo, para Parmênides e Empédocles os deuses eram a personificação das forças da Natureza.
Já no século III da era cristã, em Atenas, Epicuro empreendeu uma crítica à religião: segundo ele, o “consenso universal” advoga que os deuses existem, mas Epicuro os considerava como seres superiores e distantes dos homens. Suas teses ganharam popularidade no mundo latino. Já na era moderna, os filósofos ingleses, sobretudo D. Hume, e os enciclopedistas franceses, tais como J.J. Rousseau, Voltaire, Diderot, dAlembert e os iluministas alemães (principalmente F. A. Wolf e Lessing) retomam com vigor a discussão do problema da religião natural e a constataram como indissociável ao ser humano.
O sociólogo Émile Durkheim percebeu na religião como o fato mais primitivo de todos os fenômenos sociais (DURKHEIM, 1960, p.66). Nesses tempos pós-modernos é ele que nos faz levar a uma investigação sobre o fenômeno da religião: como um sociólogo da religião e, como um pensador do consenso social. Este retorno a Durkheim parece corresponder às preocupações do secularismo contemporâneo, dividido diante das ameaças que fazem pesar sobre a coesão social, a insatisfação para o bem público, bem como a perda de autoridade das instituições tradicionais e o surgimento do comunitarísmo, em um contexto de pressão religiosa no espaço público.
Dois argumentos sustentam a concepção de Durkheim sobre a religião. O primeiro é que a religião não é apenas um fenômeno empiricamente observável na sociedade. Segundo é que a mesma constitui um fato universal, próprio da humanidade, impossibilitando existencialistas e racionalistas negarem o fato da existência desse fenômeno sem se deixarem levar por preconceitos ou prejuízos.
A percepção do fenômeno religioso nas sociedades primitivas segundo Durkheim, é caracterizada por duas categorias fundamentais: a crença e os ritos. O primeiro, ele chama de estados de opinião que consistem em representações. O segundo são modos de ação determinados (DURKHEIM, 1960, p.50). Para tornar o conceito mais amplo, este sociólogo chegou a definir religião como "um sistema solidário de crenças e de práticas relativas às coisas sagradas, que se unem numa mesma comunidade moral, chamada igreja e todos os que a ela aderem".[2]
No final do século XIX e início do século XX, o mundo religioso, especialmente o cristianismo assistiu uma avalanche de contraideologia sem precedente, que marcou profundamente a sociedade moderna na relação de sua postura com a religião. Teóricos como: Martin Heidegger, Jean Paul Sartre, Friedrich Nietzsche, Sigmund Freud, intensificaram críticas veementes à religião advogando a inexistência de Deus ou questionando: se ele existiu, está morto e, apontando a religião como o futuro de uma ilusão.
O fato é que esse novo parâmetro influenciou substancialmente o imaginário coletivo do povo especialmente os formadores de opinião, os intelectuais dos anos de 1960. Concomitantemente às manifestações iniciadas nesta década, questionou-se e repudiou-se à moral vigente religiosa e, sob o viés da juventude, a sociedade apontava para uma nova moral, pois a juventude a julgava como hipócrita e legitimadora de tabus e poderes sociopolítico, econômico e religioso. Acusa-se de uma construção social da moral, que sob os auspícios de Nietzsche faz com que a geração questionasse a origem da moral e, as incidências destas estarem a serviço de uma ideologia dominante.[3]
O lugar da religião nas sociedades modernas é uma questão que tem preocupado a sociologia desde sua origem. Ao analisar as profundas transformações enfrentadas pelas sociedades modernas, Durkheim, Weber e Marx, cada um ao seu modo, levaram em conta o fenômeno religioso, partindo do princípio de que este, desde os primórdios, constitui o quadro da vida social e cultural de um povo.
O processo de racionalização que marcou o desdobramento da modernidade resultou na perda de plausibilidade de símbolos religiosos. A dissolução destes símbolos colocou em questão o fundamento moral das sociedades, pois com eles, a produção de laços sociais e os ideais coletivos eram aceitos pela sociedade secular. É neste contexto que Weber traduz em sua famosa frase "o desencantamento do mundo".
A desqualificação cultural das crenças e de práticas da religião tradicional, que aconteceram na maioria das sociedades modernas, e o recuo social no campo da religião, alimentaram por várias décadas a tese da secularização que levaram as consequências desta marginalização cultural da religião.
A religião sobreviveu, mas ficou quase confinada nos labirintos da manifestação privada. Teorias da secularização, muitas vezes levaram a uma leitura simplista que mediam o lugar da religião nas sociedades modernas, tendo como principal indicador o declínio das "instituições" tradicionais religiosas.
O postulado da modernidade proveniente do Iluminismo faz uma leitura da incompatibilidade entre a "irracionalidade" da religião e a "racionalidade" da ciência e da técnica encarregada de governar as sociedades modernas, no entanto, teve de ser reconsiderada para permitir a comunicação do significado das múltiplas experiências religiosas encontradas nestas sociedades. A partir dos anos 1970, verificou-se que a religiosidade popular, ainda efervescente, a ascensão do fundamentalismo referente a todas as grandes tradições religiosas e, especialmente, no coração da modernidade, uma nova cultura espiritual foi tomando forma em novos movimentos religiosos.
Este última fenômeno tem um impacto muito mais decisivo sobre o enfraquecimento das crenças secularizadas ocorridos não às margens, mas no centro das sociedades mais avançadas. Em outras palavras, estes fenômenos não estão apenas presentes nas populações socialmente marginalizadas economicamente. Ao contrário, são geralmente de classes favorecidas, integradas culturalmente, profissionalmente e economicamente à modernidade, ou, pelo menos, abertos às possibilidades de que, pelo seu grau de instrução de educação formal, recebem mais amplamente esses novos movimentos religiosos e espirituais.
A secularização continua a ser o paradigma dominante para identificar os fenômenos de diferenciação das instituições e o colapso da normatividade globalizante das religiões tradicionais, embora que as teorias nesta área têm sido objetos de discussões. Foi necessário que a sociologia fornecesse instrumentos de análise para abordar e enfrentar a questão das produções religiosas da modernidade.
O que se acreditava desapareceu e foi transformado e adaptado às condições do homem moderno. Efetivamente, a modernidade não digeriu todas as dimensões da experiência humana, que se traduz em grande parte, embora não exclusivamente, no campo religioso. Desse modo, a dimensão imaginária dos laços sociais, tais como os fundamentos normativos da vida social, e mesmo as dimensões sentimentais como a busca de sentido constatou-se que não são assimiláveis. Verifica-se ainda que, quando a modernidade está cada vez mais desencantada, a literatura política demonstrou que o mito do progresso se encontra repudiado pela própria racionalidade científica, neste contexto, o sociólogo Zygmunt Bauman em sua obra a sociedade individualizada, vem designar como um "retorno do religioso" e, efetivamente, retorno a um processo continuo de adaptação dos modos de sacralização da experiência humana.[4]
Desse modo, entende-se, ao menos em tese, não existem sociedades sem religião, mesmo que seja simplesmente manifestação religiosa. O fato é que o ser humano é essencialmente um ser religioso. Que as conjunturas socio-históricas e políticas, determinam as mudanças do imaginário religioso do povo. Do antigo paradigma de Augusto Conte, na lei dos três estágios da evolução da humanidade, hoje com a chamada crise da modernidade, ou pós-modernidade, dissolveu o mito de que a ciência e a tecnologia seria instrumento de construção do futuro, e que o homem não precisaria mais de Deus, hoje este postulado não pode ser mais sustentado. Se o mal estar da modernidade tem provocado um vazio, na expressão Charles Taylor e Gilles Lipovetsky, são sinais reveladores de que Deus não está morto e se o mataram para dar lugar a ciência, a sociedade o colocou de volta. Com a perda das antigas referências imutáveis, o homem se viu desiludido, ironia ou não do destino, na fase mais exacerbada da ciência e da tecnologia, e da critica mais virulenta ao religioso, o homem nunca foi tão tendido à contemplação. Mesmo correntes de intelectuais que teciam críticas implacáveis à contemplação religiosa, silenciaram e, aturdidos, relatavam a mudança nos mais diversos meios de comunicação, como dizia os cronistas sociais no Jornal inglês Financial Times e o periódico mensal francês Le Monde Diplomatique[5], o retorno de Deus, “Deus está de volta pro que der e vier”.
Referência Bibliográfica
BAUMAN, Zygmunt. A sociedade individualizada: vidas contadas e histórias vividas. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
DURKHEIM, Émile. Les formes élémentaires de la vie religieuse. Paris: PUF, 1960.
ELIADE, Mirceia. O Sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
FREUD, Sigmund. Obras Completas: El porvenir de una ilusión. Tomo III. Buenos Aires: El Ateneo, 2003.
[1] Mirceia Eliade. O Sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
[2] Émile Durkheim, Les formes élémentaires de la vie religieuse. Paris: PUF, 1960, p. 66.
[3] Sigmund Freud. Obras Completas: El porvenir de una ilusión. Tomo III. Buenos Aires: El Ateneo, 2003.
[4] Zygmunt Bauman. A sociedade individualizada: vidas contadas e histórias vividas. Rio de Janeiro: Zahar, 2009, p.200.
[5] Le monde diplomatique. jeudi, 23 jun 2010, chaier politique, "Les dieux sont de retour",Paris. " Face à la crise des idéologies, les Eglises traditionnelles aspirent, dans de nombreux pays, à peser sur les choix politiques. Le philosophe allemand Jürgen Habermas parle de “civilisation postséculière” : celle qui tient compte de l’importance persistante de la religion dans des sociétés pourtant profondément laïcisées. D’autres intellectuels européens ou indiens font le constat que la modernité ne peut plus se définir par une stricte séparation du séculier et du religieux".
—————